Záruby

Trstín, Eslováquia, Janeiro de 2016

Tudo é vazio, a cidade é fantasma.
A menos de um posto de gasolina em meio ao mato e neve. É eu comprando comida pra tentativa de descoberta. Montanha e neve, língua estranha, preciso terminar de me preparar, nada ali é meu, tudo aqui sou eu.
Grampos nas botas, câmera na mão, mapa e bússola. Quem mais sabe que eu to aqui fazendo isso?

No branco da paisagem o som é cor, vejo pelos ouvidos. O tilintar pesado dos grampos em barulho de armadura faz-me protegido. Sou guerreiro indo pro topo, dentro do ferro que é casca tem corpo de gente que morre e se perde no clima novo. Não tem o que dar errado.
É passo com passo, passo pesado. É peso de som pra carregar: roupa de frio, bota, notícia de que deu tudo certo. Mais do que isso, é vida, é sobrevivência, como vai ser?

No primeiro cavalete que me separa do início da trilha em neve, são pegadas anteriores que me guiam.
É pegada, é bússola, é mapa, é GPS, é curva de nível: é montanha acima, pelo caminho de menor declividade. Sou eu e os instrumentos que vão me levar até lá.

As paisagens são novas, o caminho não existe. Tudo foi coberto pelo mar etéreo de água congelada. Tudo venta, tudo muda, tudo apaga pegada e me faz temer que apague os traços que eu vinha deixando pelo caminho. Sou eu e pegada, eu olhando pra trás, eu descobrindo os novos sinais nas árvores que também passaram a me guiar. É pegada, caminho de menor declividade, GPS e sinais nas árvores.

O branco é inteiro, a neve é tudo, nada é o que eu sei. É tudo barulho sobre branco. É retorcer de galho congelado, é barulho borrachento de tronco com tronco e gelo, é neve e vento. É o GPS desligando e é isso. É neve caindo de novo do céu.
____________ É neve caindo do céu.
____________ Que não pode cair.
Porque se cair, e as pegadas?

As pegadas apagam. É eu, pegada e marca na árvore. É curva de nível, plano de menor declividade. É nada, é eu sozinho no meio do nada, na Eslováquia.
Cadê os que eu amo? Por que colocar minha vida ali? Sou humano, instrumento, sou orgânico. Sou vida que continua sob auxílio de aparelhos naquela sala branca de hospital. Não é pra mim, foi demais. Minha fraqueza é maior que montanha.

Sou eu desistindo.

Sou agora eu e música. Sou eu e pegada, de costas pro topo.
Tudo o que vinha atrás era eu. Sou eu e minhas pegadas, meu caminho, meu trajeto, tudo ali é minha casa. Conheço tudo isso, não me dá mais medo.
Sou eu, montanha e neve em pacto de pegada. Tudo o que ando foi branco, tudo que piso é psique, tudo que vejo é quintal.

Sou GPS ligando. Sou eu a dezesseis minutos do topo. Sou eu e minha  m e n t e  que me toma por mim. Sou eu livre de aparelhos. Sou eu, mente e montanha. Numa sala de casa, andando por tudo o que é branco e claro. Tudo o que é barulho de vida.

Vou correndo, vou música, vou todo subindo, vou notícia de que deu tudo certo. Vou de passo, vou de quatro, de joelho, rumo ao topo do altar em agradecer pela vida. Cada nova placa, cada nova marca nas árvores brancas me faz continuar com mais força, me faz lacrimejar, me faz tremer. Sou eu, mente, montanha e força.

Sou eu e topo.
Sou eu em explosão e implosão. Sou eu dedicando toda a força do caminho à chegada, de joelhos, de lágrimas, de músculo retesado de sentimento. Sou eu de obrigado, de muito obrigado.

Sou eu e sol, que chega no topo da montanha junto comigo. Eu e calor
de insolação
de branco
de movimento
de subida
de paz em tons claros.

Sou mala no chão, tudo na neve. Sou grito!
Choro, tremedeira, sorriso.
Sou eu abrindo as janelas da mente pro sol entrar.

É neve em movimento. Gelo, estalactite, vento.
A mala volta pras costas, com tudo dentro. Sou eu e montanha.
Eu e sol, eu e neve, eu e árvore, eu e vento. Nada é meu, tudo sou eu.
Sou montanha, sou neve, sou barulho, sou leve.
Sou sorriso, sou narciso, sou tudo e tudo aquilo que piso.
Sou lobo, sou topo, sou tudo isso, sou louco

em amor de viver.

15 de Janeiro de 2016, num avião entre Roma e Manchester

Fine & Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’

Karl Marx

THE WORKER AND THE MECHANISATION

Through the process of mechanisation, labour fragmentation and capitalist control, the factory system tends to transform the independent artisans and skilled craftspeople into appendages of the machines that they are payed to operate – the factory workers are minders of alien fixed capital. Marx calls this the real subordination of labour to capital. The detailed co-operation of labour within the factory contrasts sharply with the finer division by workers’ tasks that accompanies specialisation. The real detailed co-operation of labour within the factory contrasts sharply with the finer division by workers’ tasks that accompanies specialisation. The real subordination of labour marks the beginning of capitalist production proper, based on the extraction of relative surplus value. These are the economic battering rams with which capitalism can defeat other forms of production on the basis of its superior efficiency. Simultaneously, outside the factory, towns become rapidly growing industrial centres, disrupting every relation between town and country, while life itself is revolutionised by the diffusion of capitalist methods of production throughout the economy and across the entire world.

© Ben Fine & Alfredo Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’ – PlutoPress

Fine & Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’

Karl Marx

WORKER AS SLAVE

To distinguish the workers themselves from their ability or capacity to work, Marx called the latter labour power, and its performance or application labour. These concepts are important but often misunderstood. The most important distinguishing feature of capitalism is that labour power becomes a commodity. The capitalist is the purchaser, the worker is the seller, and the price of labour power is the wage. The worker sells labour power to the capitalist, who determines how that labour power should be exercised as labour to produce particular commodities. As a commodity, labour power has a use value, which is the creation of other use values. This property is independent of the particular society in which production takes place. However, in capitalist societies use values are produced for sale and, as such, embody abstract labour time or value. In these societies, the commodity labour power also has the specific use value that is the source of value when exercised as labour. In this, labour power is unique.

The worker is not therefore a slave in the conventional sense of the word and sold like other commodities, but owns and sells labour power. Also, the length of time for which the sale is made or formally contracted is often very short (one week, one month, or sometimes only until a specific task has been completed). Yet in many other respects the worker is like a slave. The worker has little or no control over the labour process or product. There is the freedom to refuse to sell labour power, but this is a partial freedom, the alternative in the limit being starvation or social degradation. One could as well argue that a slave could flee or refuse to work, although the level and immediacy of retribution are of a different order altogether. For these reasons the workers under capitalism have been described as wage slaves, although the term is an oxymoron. You cannot be both slave and wage worker – by definition, the slave does not have the freedoms that the wage worker must enjoy, irrespective of other conditions.

On the other side to the class of workers are the capitalists, who control the workers and the product of labour through their command of wage payments and ownership of the tools and raw materials, or means of production. This is the key to the property relations specific to capitalism. For the capitalist monopoly of the means of production ties the workers to the wage relation, explained above. If the workers owned or were entitled to use the means of production independently of the wage contract, there would be no need to sell labour power rather than the product on the market and, therefore, no need to submit to capitalist control in society, both during production and outside it.

© Ben Fine & Alfredo Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’ – PlutoPress

Fine & Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’

Karl Marx

MARX’S PHILOSOPHY

The Hegelians believed that intellectual progress explains the advance of government, culture and the other forms of social life. Therefore, the study of consciousness is the key to the understanding of society, and history is a dramatic stage on which institutions and ideas battle for hegemony. In this ever-present conflict, each stage of development contains the seeds of its own transformation into a higher stage. Each stage is an advance on those that have preceded it, but it absorbs and transforms elements from them. This process of change, in which new ideas do not so much defeat the old as resolve conflicts or contradictions within them, Hegel called the dialectic.

Human consciousness is critical in Marx’s thought, but it can only be understood in relation to historical, social and material circumstances. In this way, Marx establishes a close relationship between dialectics and history, which would become a cornerstone of his own method. Consciousness is primarily determined by material conditions, but these themselves evolve dialectically through human history.

© Ben Fine & Alfredo Saad-Filho – Marx’s ‘Capital’ – PlutoPress

Mircea Eliade – Mito e realidade

ARTE E A FASCINAÇÃO PELA DIFICULDADE

Assinalaremos em primeiro lugar a função redentora da “dificuldade”, principalmente como é encontrada nas obras de arte moderna. Se a elite se apaixona por Finnegan’s Wake, pela música atonal ou pelo tachismo, é também porque tais obras representam mundos fechados, universos herméticos onde não é possível penetrar senão mediante a superação de enormes dificuldades, equiparáveis às provas iniciatórias das sociedades arcaicas e tradicionais. Tem-se, de um lado, o sentimento de uma “iniciação”, iniciação quase desaparecida do mundo moderno; por outro lado, proclama-se aos “outros” (i.e., às “massas”), que se pertence a uma minoria secreta; não mais a uma “aristocracia” (as elites modernas se orientam para a esquerda), mas a uma gnose, que tem o mérito de ser simultaneamente espiritual e secular, opondo-se tanto aos valores oficiais quanto às Igrejas tradicionais. Através do culto da originalidade extravagante, da dificuldade e da incompreensibilidade, as elites salientam o seu desligamento do universo banal de seus pais, enquanto se insurgem contra certas filosofias contemporâneas do desespero.

No fundo, a fascinação pela dificuldade, e mesmo pela incompreensibilidade das obras de arte, trai o desejo de descobrir um novo sentido, secreto, até então desconhecido, do Mundo e da existência humana. Sonha-se em ser “iniciado”, em chegar a compreender o sentido oculto de todas essas destruições de linguagens artísticas , de todas essas experiências “originais” que, à primeira vista, parecem nada mais ter em comum com a arte. Os cartazes dilacerados, as telas vazias, chamuscadas e retalhadas a faca, os “objetos de arte” que explodem durante o vernissage, os espetáculos improvisados onde os diálogos dos atores são decididos pela sorte, tudo isso deve ter uma significação, assim como certas palavras incompreensíveis do Finnegan’s Wake se revelam, para os iniciados, carregadas de múltiplos valores e de uma estranha beleza, quando se descobre que elas derivam de vocábulos neogregos ou svahili desfigurados por consoantes aberrantes e enriquecidos por alusões secretas a possíveis calembures, quando pronunciados rapidamente e em voz alta.

Certamente, todas as experiências revoluncionárias autênticas da arte moderna refletem certos aspectos da crise espiritual ou, simplesmente, da crise do conhecimento e da criação artística. O que nos interessa aqui, entretanto, é que as “elites” encontram na extravagância e ininteligibilidade das obras modernas, a possibilidade de uma gnose iniciatória. É um “novo mundo” que está sendo reconstruído a partir de ruínas e de enigmas, um mundo quase privado, que se gostaria de manter para si mesmo e para alguns raros iniciados. Mas é tal o prestígio da dificuldade e da incompreensibilidade, que o “público”, por sua vez, é rapidamente conquistado e proclama sua total adesão às descobertas da elite.

© Mircea Eliade – Mito e Realidade (excerto) – Perspectiva

Mircea Eliade – Mito e realidade

O QUE REVELAM OS MITOS

Os mitos, efetivamente, narram não apenas a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também de todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se converteu no que é hoje — um ser mortal, sexuado, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver, e trabalhando de acordo com determinadas regras.

Um homem moderno poderia raciocinar do seguinte modo: eu sou o que sou hoje porque determinadas coisas se passaram comigo, mas esses acontecimentos só se tornaram possíveis porque a agricultura foi descoberta há uns oito ou nove mil anos e porque as civilizações urbanas se desenvolveram no antigo Oriente Próximo, porque Alexandre Magno conquistou a Ásia e Augusto fundou o Império Romano, porque Galileu e Newton revolucionaram a concepção do universo, abrindo o caminho para as descobertas científicas e preparando o advento da civilização industrial, porque houve a Revolução Francesa e porque as ideias de liberdade, democracia e justiça social abalaram os alicerces do mundo ocidental após as guerras napoleônicas, e assim por diante.

© Mircea Eliade – Mito e Realidade (excerto) – Perspectiva

Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise

Ingrid Vorsatz

HAMLET, ÉDIPO REI E ANTÍGONA

Freud havia se referido ao Hamlet de Shakespeare como sendo uma “tragédia de caráter”, à diferença de Édipo rei, que, a seu ver, caracterizaria a “tragédia de destino” por excelência. Ao tratar da problemática referente ao desejo incestuoso, Freud retoma essa tragédia sofocliana para mostrar que a ação da peça – que consiste no processo de revelar ao herói trágico sua responsabilidade em relação aos crimes que, sem saber, cometera – poderia ser comparada ao trabalho de uma psicanálise. Mas a quest˜åo do destino, no seu entender, diz respeito ao fato de que o desejo incestuoso pela mãe e sua contrapartida, o anseio por eliminar o pai enquanto rival, é o destino próprio ao humano, de cada sujeito: “…o oráculo lançou a mesma praga sobre nós antes de nascermos, como sobre ele [Édipo].” Nesse sentido, o oráculo seria comparável à ordem significante, à cadeia geracional em que cada sujeito, já determinado, não obstante deverá tomar lugar.

[…]

De acordo com a interpretação do eminente helenista [Knox], Édipo pode não ter escolhido matar o pai e desposar a própria mãe – antes, este é o destino do qual tenta escapar -, mas escolheu saber aquilo que lhe fora re-velado. Ao pretender agenciar o próprio destino, desconhecendo sua dimensão de opacidade, sela sua perdição. A saga de Édipo não é uma tragédia de destino, mas de mestria. Justo porque pretende ser livre, livrar-se do jugo do destino vaticinado pelo oráculo, o herói se condena. Não se é livre, mas sim responsável: Antígona é o avesso de Édipo rei.

© Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise (excerto) – Zahar

Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise

Ingrid Vorsatz

JUÍZO ÉTICO

O aporte que a psicanálise traz ao campo da ética advém do conceito maior freudiano. Uma vez estabelecido o inconsciente (das Unbewusste) como regente do aparato psíquico, a distinção entre ação e intencionalidade cai por terra, já que o móbil do ato pode ser inconsciente, advindo de um lugar heterogêneo – inassimilável à vontade ou à deliberação autônoma do agente. A causa é heterônoma, mas nem por isso a responsabilidade imputável ao sujeito é menor; ao contrário, a questão ética implicada na visada psicanalítica refere-se à tomada de posição do sujeito diante do que lhe advém como constrangimento do campo de Outro. Trata-se, portanto, de uma heteronomia isomórfica a uma heterotopia, indicando que a questão é topológica: advir ali onde isso era – Wo es war, soll Ich werden – implica um reviramento da problemática ética, pelo qual a causa (o desejo inconsciente) só existe (ex-siste) na medida em que é sustentada enquanto tal, em ato, por um sujeito.

“Wo es war, soll ich werden”, “Onde isso era, [eu] devo sobrevir”. Esta magistral definição que Freud nos dá do processo psicanalítico, indica-nos bem onde situar o sujeito.

Para a psicanálise, sujeito é o “ser humano submitido às leis da linguagem que o constituem e manifesta-se de forma priveligiada nas formações do inconsciente” (lapsos, actos falhados, sonhos, sintomas,etc). J. Lacan ao mostrar que o inconsciente está estruturado como uma linguagem, demonstra que só há, como sujeito, o sujeito do inconsciente.

[…]

O termo sujeito introduzido por Lacan em psicanálise serve para trabalhar com a hipótese do inconsciente sem anular a sua dimensão essencial de não-sabido (Unbewuste). “Qual é esse outro a quem estou mais ligado do que a mim, visto que no seio mais consentido da minha identidade comigo mesmo, é ele quem me agita? A sua presença só pode ser entendida num segundo grau de alteridade que o situa desde logo em posição de mediação em relação ao meu desdobramento comigo como se fosse com um semelhante.” (J.Lacan)

© Maria Belo, excerto, texto completo em: http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&link_id=309:sujeito-da-enunciacao-sujeito-do-enunciado&task=viewlink

© Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise (excerto) – Zahar

Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise

Ingrid Vorsatz

ANTÍGONA E O METRÔ DE PARIS

Guardiã da morte que a vida carrega, Antígona não hesita: age. É preciso confiar o corpo do irmão morto à terra, nomeada aqui não como , mas chtôn – que significa tanto o solo tebano como as profundezas subterrâneas em que habitam os deuses não olímpicos, o Hades, lugar dos mortos.

A terra [aqui] não é a polis, ela não é o sítio da cidade onde se reúne um mundo. Ela é, ao contrário, o abismo sobre o qual a cidade pode ser “fundada”. A terra [chtôn] protege o sítio de um mundo. Ela abriga. Os vivos e os mortos. Dos quais ela é guardiã. Em seu próprio retiro. A tragédia … lembra à cidade o sentido daquilo que a guarda e a salvaguarda, uma vez que ela esquece essa dimensão da terra como abismo.

Toda essa história sobre a relação do ato de Antígona em “confiar o corpo do irmão morto à terra” faz-me lembrar da relação da população de Paris com o seu metrô. Parte do desafio de se fazer aderirem ao novo tipo de transporte era vencer o estigma do subterrâneo: as profundezas sob a terra sempre foram associadas ao desconhecido, local que “protege o sítio de um mundo. Ela abriga. Os vivos e os mortos”, o pensar da “dimensão da terra como abismo”. A solução foi humana: com a art nouveau, transformaram as entradas do metrô de Paris em cultos à nova engenharia, fruto das novas invenções tecnológicas, portais diretos a um novo mundo do homem subvertendo a natureza, dominando seu medo pelo desconhecido através da máquina.

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© Lucas Gobatti

© Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise (excerto) – Zahar

Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise

Ingrid Vorsatz

USO DA MÁSCARA NA TRAGÉDIA ANTIGA

A máscara trágica, portanto, em vez de remeter a uma origem ancestral tem uma função significante: representa o herói trágico. Representa-o na sua função de encarnar, pela primeira vez, “o personagem individualizado cuja ação forma o centro do drama”, bem como a problemática do agente em relação à ação. Além disso, o uso desse artefato na tragédia antiga remete a algumas funções, dentre as quais poderíamos destacar a prevalência da palavra sobre a imagem. Com a face coberta, é na força da enunciação do herói trágico que reside o essencial do que ali é apresentado. Assim, paradoxalmente, a função da máscara trágica seria a de barrar a dimensão imaginária em prol da discursiva – colocando a imagem a serviço da palavra.

© Ingrid Vorsatz – Antígona e a ética trágica da psicanálise (excerto) – Zahar

Giulio Carlo Argan – Arte Moderna

Giulio Carlo Argan

O ALCANCE SOCIAL DA NOVA ESTRUTURA ESPACIAL DEFINIDA POR CÉZANNE

Mas como conciliar a atualidade de Cézanne com sua aparente indiferença pelos problemas sociais típicos de sua época? Encerrado em seu estúdio, distante do mundo, ele pensa apenas na pintura, não lhe aflora a suspeita de que seja possível isolar um problema social dentro do problema geral da realidade.

Numa das obras mais tardias e grandiosas, a última das várias imagens do Monte Sainte-Victoire, vê-se o grau de lucidez estrutural a que chegou o mestre. É esta, sem dúvida, uma das obras mais “especulativas” ou “ontológicas” de Cézanne, ponto de chegada de sua pesquisa dirigida à compreensão global do ser e de sua estrutura vital: mas pode-se negar que esta “filosofia” pura seja pura pintura? E poder-se-ia porventura censurar um artista empenhado nesse problema total, disposto a demonstrar que, se o contato direto com o mundo é pensamento, o pensamento também é contato direto com o mundo, por não ter considerado tal ou qual problema particular de sua época, mesmo se tratando da guerra franco-prussiana ou da Comuna?

De qualquer maneira, Cézanne enfrentou implicitamente o problema social, como problema central da época, ao definir não só a função, mas também o dever do artista no mundo, e naquele tipo de mundo. O “problema do quadro”, seu problema de representar a natureza, a sociedade ou a vida interior e secreta do artista, é o problema central da pintura oitocentista, não sendo senão o problema, cada vez mais premente devido à afirmação do pragmatismo industrial e capitalista, referente à razão de ser e à possibilidade de ação do artista nesse tipo de sociedade. Tal problema não se resolveria com reações psicológicas, sentimentais, práticas, optando por este ou aquele, representando os camponeses no trabalho ou os senhores a passeio no Bois de Boulogne.

A solução positiva é a de Cézanne; e isso porque Cézanne viu na abertura impressionista, que a Van Gogh se afigurara como o limite extremo do Romantismo, a perspectiva de um novo classicismo, a premissa de uma relação nova, não mais contraditória, não mais angustiada, entre o homem e o mundo. Perguntar sobre o alcance social da nova estrutura espacial definida por Cézanne é o mesmo que perguntar sobre o alcance social do novo estruturalismo arquitetônico com que os técnicos do ferro e do cimento definiram o processo pelo qual a sociedade moderna constrói seu espaço, a dimensão de sua existência; e devemos insistir uma vez mais sobre o paralelismo, se não a analogia, entre os dois fenômenos.

© Giulio Carlo Argan – Arte moderna (excerto adaptado) – Companhia das Letras

Chimamanda Ngozi Adichie – Sejamos todos feministas

CULTURA E FEMINISMO

Tem gente que diz que a mulher é subordinada ao homem porque isso faz parte da nossa cultura. Mas a cultura está sempre em transformação. Tenho duas sobrinhas gêmeas e lindas de quinze anos. Se tivessem nascido há cem anos, teriam sido assassinadas: há cem anos, a cultura Igbo considerava o nascimento de gêmeos como um mau presságio. Hoje essa prática é impensável para nós.

Para que serve a cultura? A cultura funciona, afinal de contas, para preservar e dar continuidade a um povo. Na minha família, eu sou a filha que mais se interessa pela história de quem somos, nossas terras ancestrais, nossas tradições. Meus irmãos não têm tanto interesse nisso. Mas não posso ter voz ativa, porque a cultura Igbo favorece os homens e só eles podem participar das reuniões em que as decisões familiares mais importantes são tomadas. Então, apesar de ser a pessoa mais ligada a esses assuntos, não posso frequentar reuniões. Não tenho direito a voz. Porque sou mulher.

A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura.

© Chimamanda Ngozi Adichie – Sejamos todos feministas – Companhia das Letras

Chimamanda Ngozi Adichie – Sejamos todos feministas

POR QUE USAR A PALAVRA FEMINISTA?

Algumas pessoas me perguntam: “Por que usar a palavra ‘feminista’? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido?”. Porque seria desonesto. O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral — mas escolher uma expressão vaga como “direitos humanos” é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres. Que o problema não é o ser humano, mas especificamente um ser humano do sexo feminino. Por séculos, os seres humanos eram divididos em dois grupos, um dos quais excluía e oprimia o outro. É no mínimo justo que a solução para esse problema esteja no reconhecimento desse fato.

Alguns homens se sentem ameaçados pela ideia de feminismo. Acredito que essa ameaça tenha origem na insegurança que eles sentem. Como foram criados de um determinado modo, quando não estiverem “naturalmente” dominando, como homens, a situação, sentirão a autoestima diminuída. Outros talvez enfrentem a palavra “feminismo” da seguinte maneira: “Tudo bem, isso é interessante, mas não é meu modo de pensar. Aliás, eu nem sequer penso na questão de gênero”.

Talvez não pensem mesmo. E isso é parte do problema: os homens não pensam na questão do gênero, nem notam que ela existe.

© Chimamanda Ngozi Adichie – Sejamos todos feministas – Companhia das Letras

Maurice Merleau-Ponty – O Olho e o Espírito

HOMEM, ESPELHO E CACHIMBO

Schilder observa que, ao fumar cachimbo diante do espelho, sinto a superfície lisa e ardente da madeira não só onde estão meus dedos, mas também naqueles dedos gloriosos, naqueles dedos apenas visíveis que estão no fundo do espelho. O fantasma do espelho puxa para fora minha carne, e ao mesmo tempo todo o invisível de meu corpo pode investir os outros corpos que vejo. Doravante meu corpo pode comportar segmentos tomados do corpo dos outros assim como minha substância passa para eles, o homem é espelho para o homem. Quanto ao espelho, ele é o instrumento de uma universal magia que transforma as coisas em espetáculos, os espetáculos em coisas, eu em outrem e outrem em mim.

© Maurice Merleau-Ponty – O Olho e o Espírito – II – Cosac Naify

Maurice Merleau-Ponty – O Olho e o Espírito

O OLHO E O ESPÍRITO

Diremos então que há um olhar dentro, um terceiro olho que vê os quadros e mesmo as imagens mentais, como se falou de um terceiro ouvido que capta as mensagens de fora através do rumor que suscitam em nós? Pra quê? Toda a questão é compreender que nossos olhos já são muito mais que receptores para as luzes, as cores e as linhas: computadores do mundo que têm o dom do visível, como se diz que o homem inspirado tem o dom das línguas. Claro que esse dom se conquista pelo exercício, e não é em alguns meses, não tampouco na solidão que um pintor entra em posse de sua visão. A questão não é essa: precoce ou tardia, espontânea ou formada no museu, sua visão em todo caso só aprende vendo, só aprende por si mesma. O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio, e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas. Não se pode fazer um inventário limitativo do visível como tampouco dos usos possíveis de uma língua ou somente de seu vocabulário e de suas frases. Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus fins, o olho é aquilo que foi sensibilizado por um certo impacto do mundo e o restitui ao visível pelos traços da mão. Não importa a civilização em que surja, e as crenças, os motivos, os pensamentos, as cerimônias que a envolvam, e ainda que pareça votada a outra coisa, de Lascaux até hoje, pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma senão o da visibilidade.

© Maurice Merleau-Ponty – O Olho e o Espírito – II – Cosac Naify

Philip Ball – Critical Mass

ANIMAL SPIRITS

Keynes, however, doubted that humans are readily capable of optimal or even particularly rational choices:

a large proportion of our positive activities depend on spontaneous optimism rather than inaction, and not as the outcome of a weighted average of quantitative benefits multiplied by quantitative probabilities.

In other words, you can devise all the complicated formulas you like, but in the end most of us – including traders – are guided by instinct and impulse, by what Keynes called ‘animal spirits’.

© Philip Ball – Critical Mass (excerto) – Arrow Books

Philip Ball – Critical Mass

SURPLUS LABOUR

But here’s the catch. In a working day (which in the mid-nineteenth century could be sixteen hours long), workers can produce goods worth more than a subsistence wage. This ‘surplus labour’ is the source of the capitalists’ profits. Machines, however, do not offer surplus labour – in a competitive market, industrialists will have to buy them at a cost equal to the value of the goods they can generate. So mechanization renders workers unemployed, but does not rescue the capitalists’ profits.

© Philip Ball – Critical Mass (excerto) – Arrow Books

Philip Ball – Critical Mass

THE FORMULA

Fyodor Dostoevsky’s alter ego in Letters from the Underworld rages against the determinism that statistics threatened:

As a matter of fact, if ever there shall be discovered a formula which shall exactly express our wills and whims; if there ever shall be discovered a formula which shall make it absolutely clear what those wills depend upon, and what laws they are governed by, and what means of diffusion they possess, and what tendencies they follow under given circumstances; if ever there shall be discovered a formula which shall be mathematical in its precision, well, gentlemen, whenever such a formula shall be found, man will have ceased to have a will of his own – he will have ceased even to exist.

© Philip Ball – Critical Mass (excerto) – Arrow Books

Victor Hugo – O Corcunda de Notre Dame

TUDO ERA DE PEDRA

Mais abaixo, era horrível de se ver, o telha de Saint-Jean-le-Rond parecia um pequeno cartão dobrado ao meio. O arquidiácono examinava também, uma após a outra, as impassíveis esculturas da torre, igualmente suspensas no precipício, mas sem parecerem assustadas nem demonstrarem qualquer solidariedade. Em volta, tudo era de pedra: os monstros de bocarras escancaradas, à frente; o chão duro da praça, abaixo; e Quasímodo que chorava, acima.

© Victor Hugo – O corcunda de Notre Dame (excerto) – Zahar

Victor Hugo – O Corcunda de Notre Dame

ISTO MATARÁ AQUILO

Se quisermos, muito sumariamente, resumir o que dissemos até aqui, deixando de lado mil comprovações e também mil objeções de detalhe, chegamos ao seguinte: a arquitetura foi, até o século XV, o registro principal de humanidade, sem que nesse intervalo aparecesse no mundo um só pensamento mais complicado que não se tornasse edifício. Ou seja, toda ideia popular, assim como toda lei religiosa, teve seus monumentos e o gênero humano, enfim, nada pensou de importante que não fosse escrito na pedra. E por quê? Porque todo pensamento, tanto religioso quanto filosófico, quer se perpetual, porque a ideia que influenciou uma geração quer influenciar outras e deixar sua marca. E que imortalidade precária a do manuscrito! Um edifício é um livro bem mais sólido, durável e resistente! Para destruir a palavra escrita, bastam uma tocha e um turco. Para demolir a palavra construída, é preciso uma revolução social, uma revolução terrestre. Os bárbaros passaram pelo Coliseu, o dilúvio, talvez pelas pirâmides.

No Século XV, tudo muda.

O pensamento humano descobre um meio de se perpetuar, não somente mais durável e mais resistente do que a arquitetura, mas também mais simples e mais fácil. A arquitetura perde o trono. Às letras de pedra de Orfeu sucedem as letras de chumbo de Gutenberg.

O livro mata o edifício.

A invenção da imprensa é o maior acontecimento da história. É a revolução-mãe. É o modo de expressão da humanidade que se renova totalmente, é o pensamento humano que se subtrai a uma forma e se investe em outra, é a completa e definitiva mudança de pele da serpente simbólica que, desde Adão, representa a inteligência.

Sob a forma impressa, o pensamento se torna imperecível como nunca; se torna volátil, impossível de se prender, indestrutível. Mistura-se ao ar. No tempo da arquitetura, ele era montanha e poderosamente se apossava de um século e de um lugar. No tempo da imprensa, se torna bando de pássaros, se espalha aos quatro ventos e ocupa, ao mesmo tempo, todos os pontos do ar e do espaço.

[…]

Se, em vez de monumentos característicos, como estes de que acabamos de falar, examinarmos o aspecto geral da arte entre os séculos XVI e XVIII, observaremos os mesmos fenômenos de declínio e definhamento. A partir de Francisco II, a forma arquitetônica do edifício se apaga cada vez mais, realçando a forma geométrica, como se realça a estrutura óssea de um doente emagrecido. As belas linhas da arte cedem às frias e inexoráveis linhas do geômetra. O edifício deixa de ser um edifício, torna-se um poliedro. Mas a arquitetura faz de tudo para esconder essa nudez. O frontão grego se inscreve no frontão romano e vice-versa. Continua sendo o Panteão no Parthenon, São Pedro de Roma. Vejam as casas de tijolo e quinas de pedra, de Henrique IV: a praça Royale e a Praça Dauphine. E as igrejas de Luís XIII, pesadonas, atarracadas, de arco abatido, socadas, com cúpulas sobrepostas como uma corcunda. E a arquitetura do cardeal Mazarin, com seu mau pasticcio italiano, visto no Quatre-Nations. Ou os palácios de Luís XIV, compridos quartéis para cortesãos: rígidos, glaciais, tediosos. E, para concluir, Luís XV, com florezinhas e sinuosidades, verrugas e fungos que desfiguram a velha arquitetura caduca, desdentada e vaidosa. De Francisco II a Luís XV, a doença cresce em progressão geométrica. A arte se reduz à pele em cima dos ossos. Miseramente agoniza.

Enquanto isso, o que se passa com a imprensa? Toda essa vida que abandona a arquitetura se incrusta nela. À medida que a arquitetura decai, a imprensa infla e floresce. Esse capital de forças que o pensamento humano aplicava em edifícios passa a ser aplicado em livros. De forma que, a partir do século XVI, a imprensa, crescendo na medida em que a arquitetura definha, disputa a batalha e ganha. No século XVII, ela já está suficientemente soberana, triunfante e firme em sua vitória para oferecer ao mundo o espetáculo de um grande século literário. No XVIII, tendo passado muito tempo à sombra da corte de Luís XIV, ela retoma a velha espada de Lutero e arma Voltaire, correndo em seguida, amotinada, ao ataque da velha Europa, já eliminada a expressão arquitetural. No final do século XVIII, tudo tinha sido destruído. E tudo se reconstrói no XIX.

Agora perguntamos: qual das duas artes há três séculos representa realmente o pensamento humano? Qual o traduz? Qual exprime não só suas manias literárias e escolásticas, mas também seu vasto, profundo e universal movimento? Qual delas constantemente se superpõe, sem ruptura nem lacuna, ao gênero humano, como monstro de mil pés em marcha? A arquitetura ou a imprensa?

A imprensa.

© Victor Hugo – O corcunda de Notre Dame (excerto) – Zahar

Victor Hugo – O corcunda de Notre Dame

OS INCONVENIENTES DE SEGUIR UMA MULHER BONITA À NOITE PELAS RUAS

Sem saber o que fazer, Gringoire seguiu a cigana. Viu-a tomar com a cabra a rua de la Coutellerie e tomou, então, a rua de la Coutellerie.
— Por que não? — perguntou-se.
Gringoire, filósofo prático das ruas de Paris, já havia observado que nada é mais propício ao devaneio do que seguir uma bonita mulher sem saber aonde ela vai. Há, nessa abdicação voluntária do livre-arbítrio, nessa fantasia que se submete a outra fantasia, que a desconhece, uma mistura de independência extravagante e obediência cega, algo entre a escravidão e a liberdade, que muito agradava a Gringoire, espírito essencialmente misto, indeciso e complexo, adaptado a todos os extremos, incessantemente suspenso entre todas as propensões humanas e usando uma para neutralizar outra. Ele gostava de se comparar ao túmulo de Maomé, atraído em sentidos inversos por dois ímãs e eternamente oscilante entre o alto e o baixo, entre a abóbada e o chão, entre a queda e a ascensão, entre o zênite e o nadir.
Se Gringoire vivesse nos nossos dias, como se manteria bem entre o clássico e o romântico!

© Victor Hugo – O corcunda de Notre Dame (excerto) – Zahar

Steven Pinker – Do que é feito o pensamento

SOBRE MÉTODOS DE CONTAGEM II

Lembre-se de que, além da capacidade universal humana de representar conjuntos de indivíduos, as pessoas conseguem acompanhar números exatos pequenos (até três ou quatro), e também conseguem estimar quantidades bem maiores, embora apenas de forma aproximada (esse era o sistema numérico por analogia documentado por Dehaene e Spelke em seu estudo com bilíngues e imagens do cérebro). Esses dois componentes da noção de número estão presentes em bebês e em macacos, e evidentemente em todas as sociedades humanas. Sistemas mais sofisticados capazes de contabilizar números exatos maiores aparecem mais tarde, tanto na história quanto no desenvolvimento infantil. Eles tendem a ser inventados quando uma sociedade desenvolve a agricultura, gera grandes quantidades de objetos indistinguíveis e precisa rastrear suas magnitudes exatas, em especial quando eles são negociados ou taxados.
[…]
Não é que seja impossível determinado tipo de linguagem se dissociar de determinado tipo de sociedade, circunstância que faria com que a hipótese whorfiana fosse por princípio impossível de pôr à prova. As línguas evoluem e divergem sob vários aspectos por causa da dinâmica interna de pronúncia e gramática e dos caprichos da história. Por essas razões, sociedades semelhantes podem ter tipos diferentes de idioma, como o húngaro e o tcheco ou o hebraico e o inglês. Para que o Determinismo Linguístico seja verdadeiro, essas diferenças tipológicas, sozinhas — e não nenhuma diferença correlacionada no tipo de sociedade —, teriam de canalizar os pensamentos das respectivas sociedades e falantes para direções diferentes. No exemplo que temos à mão, teria de haver povos impedidos de desenvolver o conjunto de práticas culturais que inclui contar por causa do acidente histórico de que sua língua por acaso não possuía palavras para números, enquanto povos semelhantes, que tiveram a sorte de falar uma língua com palavras para números, decolaram para a sofisticação matemática. No mundo real, a história mostra que, quando as sociedades ficam mais organizadas e complexas, seja por si sós ou sob a pressão de vizinhos, rapidamente desenvolvem ou tomam emprestado um sistema de contagem, independentemente do seu tipo de língua.

© Steven Pinker – Do que é feito o pensamento (excerto) – Companhia das Letras

Steven Pinker – Do que é feito o pensamento

SOBRE MÉTODOS DE CONTAGEM I

A alegação mais descarada do Determinismo Linguístico nos últimos anos é o estudo de Peter Gordon sobre a noção de números num povo amazônico. Como já lemos, Gordon defendeu a “versão mais forte” da hipótese whorfiana, e foi assim que o estudo foi descrito pela imprensa em 2004. A tribo pirahã, do Brasil, como muitos outros povos caçadores e coletores,  conta apenas com três palavras para números, que significam “um”, “dois” e “muitos”. Mesmo essas são usadas de forma imprecisa, mais ou menos como a expressão em inglês a couple, que tecnicamente se refere a dois, mas que é  muitas vezes usada para outros números pequenos.
[…]
Antigamente, eu ficava estupefato com a prevalência de sistemas de contagem “um, dois, muitos” entre povos iletrados, até que perguntei ao antropólogo Napoleon Chagnon (que tinha estudado outra tribo amazônica, os ianomâmis) como eles surgem. Ele disse que em seu dia-a-dia os ianomâmis não precisam de números exatos porque seguem os objetos como indivíduos, um por um. Um caçador, por exemplo, reconhece cada uma de suas flechas e, portanto, sabe se uma está faltando sem ter de contá-las. É o mesmo costume mental que faria a maioria de nós ter de parar para pensar se alguém nos perguntasse quantos primos de primeiro grau temos, ou quantos eletrodomésticos temos na cozinha, ou quantos orifícios temos na cabeça.

© Steven Pinker – Do que é feito o pensamento – Companhia das Letras

Steven Pinker – Do que é feito o pensamento

SOBRE DEBATES INTELECTUAIS E GARRAFAS DE VINHO

Qualquer pessoa que participe de debates intelectuais passa a reconhecer as táticas, as tramas e os truques sujos que os debatedores usam para confundir o público quanto os fatos e a lógica não estão a seu favor. Há o apelo à autoridade (“Spaulding diz isso, e ele tem um Prêmio Nobel”), a atribuição de motivos (“Firefly só está querendo chamar a atenção e conseguir dinheiro”), xingamentos (“A teoria de Driftwood é racista”) e a difamação por associação (“A Hackenbush é financiada por uma fundação que já financiou nazistas”). Talvez a mais conhecida seja a montagem e a destruição de um espantalho, um estratagema tão versátil que às vezes fica difícil imaginar como a vida intelectual sobreviveria sem ele.

A beleza do espantalho é que ele pode ser usado de inúmeras maneiras. A mais trivial é a luta de boxe com o espantalho, em que se substitui um oponente formidável por um simplório facilmente derrotável. Mas existe também o espantalho bifásico: primeiro monte a efígie, depois admita que afinal ela não é tão irreal assim, mas arme essa admissão como uma capitulação a suas críticas devastadoras. E há também o  espantalho do sacrifício, útil quando se teme estar nas beiradas da respeitabilidade: monte uma versão fanática da teoria de alguém, depois se distancie dela para comprovar sua moderação. É a mesma estratégia que os vendedores de vinho usam quando põem uma garrafa de preço exorbitante em cada prateleira. Eles sabem que compradores inseguros gravitam para a média, portanto, se houver uma garrafa de cem dólares à mostra, eles vão comprar a de trinta dólares, ao passo que, se a garrafa mais cara custasse trinta dólares, eles se contentariam gastando dez.

© Steven Pinker – Do que é feito o pensamento – Companhia das Letras

Steven Pinker – Do que é feito o pensamento

Caro Amigo Branco
Quando nasço sou preto
Quando cresço sou preto
Quando adoeço sou preto
Quando saio no sol sou preto
Quando tenho frio sou preto
Quando tenho medo sou preto
E quando morro sou preto.

Mas você, amigo branco
Quando nasce é rosa
Quando cresce é branco
Quando adoece fica verde
Quando sai no sol fica vermelho
Quando tem frio fica azul
Quando tem medo amarela
E quando morre é cinza
E tem a cara-de-pau de dizer que eu é que sou de cor?

© Steven Pinker – Do que é feito o pensamento – Companhia das Letras – poema passado a Steven Pinker por Saroja Subbiah, e que circulou entre os funcionários maoris em um prédio do governo neozelandês. Da polissemia das palavras para cores.

J.-D. Nasio – Por que repetimos os mesmos erros

AMOR COMO RESULTADO

Para fechar nossas considerações sobre identidade e repetição, não posso deixar de expor-lhes uma espantosa confidência de Descartes, na qual ele confirma nossa tese quanto à afeição inconsciente a um traço: amamos nosso amado não pelo que ele é, mas por ele ser portador de um traço que o torna desejável a nossos olhos. Agora escutemos o filósofo revelando seu segredo: “Quando eu era criança, gostava de uma garota da minha idade que era vesga. Quando eu via seus olhos esbugalhados, sentia fervilhar a paixão do amor. Mais tarde, durante muito tempo, vendo as pessoas vesgas, sentia-me mais inclinado a apreciá-las do que outras, só porque tinham esse defeito; e, contudo, não sabia ser esta a razão. Assim, quando somos impelidos a gostar de alguém, sem que saibamos a causa, sabemos que isso resulta do fato de existir alguma coisa nele semelhante ao que existiu num outro objeto que amamos antes, ainda que não saibamos o que é“. (Carta a Chanut de 6 de junho de 1647).

© J. -D. Nasio – Por que repetimos os mesmos erros (excerto) – Zahar

J.-D. Nasio – Por que repetimos os mesmos erros

PERSEVERAR NO SER

Podemos estipular um objetivo para a repetição? Ou ela teria um objetivo predeterminado? Há um filósofo que os permite responder claramente a essa pergunta. Na Ética (Terceira parte), Spinoza tenta reduzir toda a vida a uma única tendência fundamental, a tendência de todo ser a “perseverar no ser”. Fico sempre fascinado diante dessa sentença tão poderosa, que, em três palavras, diz o que é a vida. Inúmeros filósofos e homens de ciência tentaram definir a vida. Alguns, por exemplo, afirmaram ser o “conjunto das funções que resistem à morte”; outros, “o que podemos abolir”; e outros ainda, “o que se desgasta e produz dejetos”. Trata-se de definições que, sem exceção, apontam no fim a natureza perecível da vida. Spinoza, por sua vez, adota posição oposta. Ele enfatiza sobretudo a força expansiva da vida, o impulso que se preserva sem enfraquecer e triunfa sobre todos os obstáculos. Conforme afirma: “A vida é a força que faz perseverar as coisas em seu ser”. Todo ser, exclusivamente pelo fato de existir, tende a continuar a existir e se esforçará por todos os meios possíveis para perseverar no seu ser. Ao escrever este livro, o que faço senão perseverar no meu ser? Nossa existência é um plebiscito, a cada instante, de nosso desejo de viver. Todo dia, ao nos levantarmos e nos dedicarmos a nossos afazeres, implicitamente, dizemos sim à vida. Entretanto, ignoro até quando renovarei minha afirmação cotidiana de viver. Meu corpo é que decidirá isso, e, por trás dele, meu inconsciente. No momento, perante meus dois senhores – meu corpo e meu inconsciente -, recolho-me à minha insignificância e limito-me a perseverar no meu ser. Escrevo estas páginas hoje, escreverei outras amanhã e, enquanto meus senhores me ampararem, perseverarei no meu ser, prosseguirei minha marcha.

© J. -D. Nasio – Por que repetimos os mesmos erros (excerto) – Zahar

Marcel Mauss – Sociologia e antropologia

EFEITO FÍSICO NO INDIVÍDUO DA IDEIA DE MORTE SUGERIDA PELA COLETIVIDADE

Portanto, num povo que é assim altamente emocional, cujo cérebro se acha num estado de equilíbrio instável, sujeito a uma excitação excessiva ou a uma profunda melancolia; num povo que não tem medo da morte, no qual o instinto de preservação da vida é espantosamente fraco, que é profundamente supersticioso, que atribui poderes maléficos ilimitados aos deuses e aos feiticeiros malignos, quando alguém que possui essas características mentais num grau acentuado se convence de que é vítima de um deus poderoso ou de um tohunga (feiticeiro), o choque nervoso excessivo torna todo o sistema nervoso “paretic” [parético]; ele não oferece resistência ao estado de estupor que então ocorre; o indivíduo se absorve em si e se fixa na ideia da enormidade de seu pecado e do caráter desesperado de seu caso; ele é a vítima sem esperança de uma melancolia de ilusão, ilusão todo-poderosa que o submerge: ele ofendeu os deuses e morrerá. Ele esquece o interesse das coisas exteriores; o estado mórbido é centralizado de uma forma inteiramente aguda; a depressão nervosa é grande, há perda de energia física, e essa depressão secundária estende-se gradualmente a todos os órgãos; as funções vitais se deprimem, o coração se deprime, os músculos involuntários se entorpecem, e finalmente produz-se uma completa “anergia” ou a morte. O espírito privado de equilíbrio sucumbe sem combate à violência do choque de um medo supersticioso invasor.

© Marcel Mauss – Sociologia e Antropologia –Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade – III. Tipos de fatos neozelandeses e polinésios (excerto adaptado) – Cosac Naify

Honoré de Balzac – O Lírio do Vale

SOBRE A IRRESISTIBILIDADE DO SENTIMENTO (REVISITED)

Uma lágrima brilhou nos olhos de Henriette.
—E, caro conde, se por acaso uma mulher fosse involuntariamente submetida a algum sentimento alheio aos que a sociedade lhe impõe, confesse que quanto mais esse sentimento fosse irresistível, mais ela seria virtuosa ao sufocá-lo, ao se sacrificar pelos filhos, pelo marido. Aliás, essa teoria não é aplicável a mim, que infelizmente ofereço um exemplo do contrário, nem a você, a quem jamais se aplicará.
A mão úmida e escaldante encostou-se à minha e se apoiou sobre ela, silente.

© Honoré de Balzac – O Lírio do Vale (excerto) – L&PM Pocket

Honoré de Balzac – O Lírio do Vale

CONSELHOS COMPORTAMENTAIS II

Uma das regras mais importantes da ciência das maneiras é um silêncio quase absoluto sobre si mesmo. Um dia desses, encene a comédia de falar de si mesmo a pessoas apenas conhecidas, converse com elas sobre seus sofrimentos, prazeres ou negócios, e verá a indiferença sucedendo ao interesse fingido. Depois, ao chegar o tédio, se a dona de casa não o interromper cortesmente, cada um se afastará com pretextos habilmente apresentados. Mas deseja reunir a seu redor todas as simpatias, passar por um homem amável e espirituoso, de convívio agradável? Converse sobre eles mesmos, procure uma maneira de pô-los em cena, ainda que levantando questões aparentemente inconciliáveis com os indivíduos: os rostos se animarão, as bocas lhe sorrirão, e quando você partir todos o elogiarão. Sua consciência e a voz do coração lhe dirão o limite em que começa a covardia das adulações e onde acaba a amabilidade da conversa.

© Honoré de Balzac – O Lírio do Vale (excerto) – L&PM Pocket

Honoré de Balzac – O Lírio do Vale

CONSELHOS COMPORTAMENTAIS I

Meu pai observou outrora que uma das formas mais ferinas da polidez mal compreendida é o abuso das promessas. Quando lhe pedirem alguma coisa que você não saiba fazer, recuse claramente, não deixando nenhuma falsa esperança; depois conceda prontamente o que quer outorgar: assim adquirirá a amabilidade da recusa e a amabilidade do benefício, dupla lealdade que realça maravilhosamente um caráter. Creio que ficam mais sentidos conosco por uma esperança desfeita do que contentes por um favor prestado. Sobretudo, meu amigo, porque essas pequenas pequenas coisas estão de fato entre minhas atribuições, e posso me deter naquilo que creio saber, não seja confiante, nem banal, nem solícito, três perigos! A confiança excessiva diminui o respeito, a banalidade nos vale o desprezo, o zelo nos torna excelentes para sermos explorados.

© Honoré de Balzac – O Lírio do Vale (excerto) – L&PM Pocket

Marcel Mauss – Sociologia e Antropologia

A res não deve ter sido, na origem, a coisa bruta e apenas tangível, o objeto simples e passível de transação que ela se tornou. Parece que a melhor etimologia é a que compara com a palavra sânscrita rah, ratih, dádiva, presente, coisa agradável. A res deve ter sido, antes de tudo, o que dá prazer a uma outra pessoa.

A RES NAS TRANSAÇÕES NO DIREITO PESSOAL E DIREITO REAL (DIREITO ROMANO MUITO ANTIGO)

O contratante é, em primeiro lugar, reus; é antes de tudo o homem que recebeu a res de outrem, tornando-se assim seu reus, isto é, o indivíduo que está ligado a ele pela coisa mesma, ou seja, por seu espírito. A etimologia já foi proposta e com frequência eliminada como não tendo nenhum sentido. No entanto, ela possui um, muito nítido. De fato, como observou Hirn, reus é originalmente um genitivo em os de res, e substitui rei-jos. Trata-se do homem que é possuído pela coisa. É verdade que Hirn e Walde, que o reproduz, traduzem aqui res por “processo” e rei-jos por “implicado no processo”. Mas essa tradução é arbitrária, supondo que o termo res é antes de tudo um termo de procedimento judicial. Ao contrário, se for aceita nossa derivação semântica, toda res e toda traditio de res sendo objeto de uma “questão”, de um “processo” público, compreende-se que o sentido de “implicado no processo” seja um sentido secundário. Com mais forte razão, o sentido de culpado, para reus, é ainda mais derivado, e reconstituiríamos a genealogia dos sentidos de forma diretamente inversa da que se costuma fazer. Diríamos: 1 ) o indivíduo possuído pela coisa; 2 ) o indivíduo implicado na questão causada pela traditio da coisa; 3 ) enfim, o culpado e o responsável. Desse ponto de vista, todas as teorias do “quase delito”, origem do contrato, do nexum e da actio, são um pouco mais esclarecidas. O simples fato de ter a coisa coloca o accipiens num estado incerto de quase culpabilidade (damnatus, nexus, aere obaeratus), de inferioridade espiritual, de desigualdade moral (magister, minister) perante o fornecedor (tradens).

Ligamos igualmente a esse sistema de ideias um certo número de traços muito antigos da forma ainda praticada, se não compreendida, da mancipatio, da compra-venda que se tornará a emptio venditio, no direito romano mais antigo. Em primeiro lugar, assinalamos que ela sempre comporta uma traditio. O primeiro detentor, tradens, manifesta sua propriedade, separa-se solenemente de sua coisa, entrega-a e assim compra o accipiens. Em segundo lugar, a essa operação corresponde a mancipatio propriamente dita. Aquele que recebe a coisa toma-a em sua manus e não apenas a reconhece aceita, mas reconhece-se ele próprio vendido até o pagamento. Tem-se o costume, na esteira dos prudentes romanos, de considerar apenas uma mancipatio e de compreendê-la somente como uma tomada de posse, mas existem várias tomadas de posse simétricas, de coisas e de pessoas, na mesma operação.

Discute-se, por outro lado, e muito longamente, a questão de saber se a emptio venditio corresponde a dois atos separados ou a um só. Como se vê, fornecemos uma outra razão para dizer que são dois que devem ser contados, embora eles possam seguir-se quase imediatamente na venda à vista. Assim como nos direitos mais primitivos há a dádiva e depois a dádiva retribuída, assim também no direito romano há a colocação à venda e depois o pagamento. Nessas condições não há nenhuma dificuldade de compreender todo o sistema e inclusive a estipulação.

De fato, quase basta observar as fórmulas solenes que foram utilizadas: a da mancipatio, relativa ao lingote de bronze, a da aceitação do ouro do escravo que é libertado (esse ouro “deve ser puro, probo, profano, dele”, puri, probi, profani, sui); elas são idênticas. Além do mais, são ambas ecos de fórmulas da mais velha emptio, a do gado e do escravo, que nos foi conservada em sua forma do jus civile. O segundo detentor só aceita a coisa isenta de vícios e, principalmente, de vícios mágicos; e só aceita porque pode retribuir ou compensar, pagar o preço. Notar as expressões reddit pretium, reddere etc., em que aparece ainda o radical dare.

Aliás, Festo nos conservou claramente o sentido do termo emere (comprar) e mesmo a forma de direito que ele exprime. Ele diz também: emere é tomar, aceitar alguma coisa de alguém.

O outro termo da emptio venditio parece igualmente fazer ressoar uma música jurídica diferente da dos prudentes romanos, para os quais só havia escambo e doação quando não havia preço e moeda, signo da venda. Vendere, originariamente venum-dare, é uma palavra composta de tipo arcaico, pré-histórico. Sem dúvida nenhuma, ela compreende nitidamente o elemento dare, que lembra a dádiva e a transmissão. Quanto ao outro elemento, ele parece derivado de um termo indo-europeu que significava já, não a venda, mas o preço de venda ωνη, em sânscrito vasnah, que Hirn, aliás, aproximou de uma palavra búlgara que significa dote, preço de compra da mulher.

© Marcel Mauss – Sociologia e Antropologia – Ensaio sobre a dádiva – III. Sobrevivências desses princípios nos direitos antigos e nas economias antigas (excerto adaptado) – Cosac Naify

Luiz Roberto Salinas Fortes – Retrato Calado

O INSTRUMENTO DE TORTURA, CENA PRIMITIVA

Nu, completamente nu. Obrigam o paciente a sentar no chão. Amarram-me as mãos, que protegem com uma cobertura de pano, uma contra a outra. Forçam-no a manter o joelhos unidos, dobrados contra o peito e envolvidos pelos braços amarrados. No vão entre os braços e o joelho enfiam uma barra de ferro e penduram-na – penduram-me – em dois cavaletes. Rápidos, eficientes, bem treinados.

© Luiz Roberto Salinas Fortes – Retrato Calado (excerto) – Cosacnaify

Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas

CAPÍTULO XLIX – A PONTA DO NARIZ

Nariz, consciência sem remorsos, tu me valeste muito na vida… Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor? A explicação do doutor Pangloss é que o nariz foi criado para uso dos óculos, — e tal explicação confesso que até certo tempo me pareceu definitiva; mas veio um dia, em que, estando a ruminar esse e outros pontos obscuros de filosofia, atinei com a única, verdadeira e definitiva explicação.

Com efeito, bastou-me atentar no costume do faquir. Sabe o leitor que o faquir gasta longas horas a olhar na ponta do nariz, com o fim único de ver a luz celeste. Quando ele finca os olhos na ponta do nariz, perde o sentimento das coisas externas, embeleza-se o invisível, apreende o impalpável, desvincula-se da terra, dissolve-se, eteriza-se. Essa sublimação do ser pela ponta do nariz é o fenômeno mais excelso do espírito, e a faculdade de a obter não pertence ao faquir somente: é universal. Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e ta contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.

Ouço daqui uma objeção do leitor: — Como pode ser assim, diz ele, se nunca jamais ninguém não viu estarem os homens a contemplar o seu próprio nariz?

Leitor obtuso, isso prova que nunca entraste no cérebro de um chapeleiro. Um chapeleiro passa por uma loja de chapéus; é a loja de um rival, que a abriu há dois anos; tinha então duas portas, hoje tem quatro; promete ter seis e oito. Nas vidraças ostentam-se os chapéus do rival; pelas portas entram os fregueses do rival; o chapeleiro compara aquela loja com a sua, que é mais antiga e tem só duas portas, e aqueles chapéus com os seus, menos buscados, ainda que de igual preço. Mortifica-se naturalmente; mas vai andando, concentrado, com os olhos para baixo ou para frente, a indagar as causas da prosperidade do outro e do seu próprio atraso, quando ele chapeleiro é muito melhor chapeleiro do que o outro chapeleiro… Nesse instante é que os olhos se fixam na ponta do nariz.

A conclusão, portanto, é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação, equilíbrio.

© Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Capítulo XLIX – Ateliê Editorial

Machado de Assis – Dom Casmurro

OS VERMES

“Ele fere e cura!”. Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez, tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos
por eles.

— Meu senhor, respondeu-me um longo verme gordo, nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos.

Não lhe arranquei mais nada. Os outros todos, como se houvessem passado palavra, repetiam a mesma cantilena. Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.

© Machado de Assis – Dom Casmurro – Capítulo XVII – Os Vermes – Ateliê Editorial

Machado de Assis – Dom Casmurro

REZA DE TROPEL

As pazes fizeram-se como a guerra, depressa. Buscasse eu neste livro a minha glória, e diria que as negociações partiram de mim; mas não, foi ela que as iniciou. Alguns instantes depois, como eu estivesse cabisbaixo, ela abaixou também a cabeça, mas voltando os olhos para cima a fim de ver os meus. Fiz-me de rogado; depois quis levantar-me para ir embora, mas nem me levantei, nem sei se iria. Capitu fitou-me uns olhos tão ternos, e a posição os fazia tão súplices, que me deixei ficar, passei-lhe o braço pela cintura, ela pegou-me na ponta dos dedos, e…

Outra vez D. Fortunata apareceu à porta da casa; não sei para que, se nem me deixou tempo de puxar o braço; desapareceu logo. Podia ser um simples descargo de consciência, uma cerimônia, como as rezas de obrigação, sem devoção, que se dizem de tropel; a não ser que fosse para certificar aos próprios olhos a realidade que o coração lhe dizia…

Fosse o que fosse, o meu braço continuou a apertar a cintura da filha, e foi assim que nos pacificamos. O bonito é que cada um de nós queria agora as culpas para si, e pedíamos reciprocamente perdão. Capitu alegava a insônia, a dor de cabeça, o abatimento do espírito, e finalmente “os seus calundus”. Eu, que era muito chorão por esse tempo, sentia os olhos molhados… Era amor puro, era efeito dos
padecimentos da amiguinha, era a ternura da reconciliação.

© Machado de Assis – Dom Casmurro – Capítulo XLVII – As Pazes – Ateliê Editorial

Aristófanes – As Aves

VISÃO DAS AVES AOS HOMENS
[Vendo os homens de cima, à Cidade das Aves, nas nuvens:]

CORO:
Voamos alto e temos bons olhos!
Daqui é possível avistar uma árvore diferente, que só cresce entre os homens: ela floresce mentiras na primavera e quando o inverno chega, seus ramos não soltam folhas e sim, flechas de violência.

CORIFEU:
Vemos também regiões sombrias, onde os homens bons convivem com os corruptos. Quando a noite cai é preciso cuidado, pois a desconfiança ronda nas trevas… Este é o lado escuro da vida humana.

© Aristófanes – As Aves, Comédia Grega (excerto) – Editora 34

Victor Hugo – Os Trabalhadores do Mar

PIEUVRE

Não há aperto igual ao do cefalópode.
É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes; uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível; é menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne; a ventosa é o homem que entra no bicho. Incham-se os músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele, debaixo de um peso imundo, jorra o sangue e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames; a hidra incorpora-se ao homem; o homem amalgama-se à hidra. Ficam sendo um só. Pesa aquele sonho. O tigre pode antes apenas devorar; o polvo (o horror!) aspira. Puxa o homem a si e em si, e, atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é um monstro.
Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.

© Victor Hugo – Os Trabalhadores do Mar (excerto) – Cosacnaify

Victor Hugo – Os Trabalhadores do Mar

CORNE DE LA BÊTE

Na extremidade da peninsula da casa mal-assombrada havia uma grande rocha, que os pescadores do Hommet chamavam Corne de la Bête. Essa rocha, espécie de pirâmide assemelhava-se, posto que menos elevada, ao Pináculo de Jersey. Nas marés cheias, o mar separava-a da península e a Corne de la Bête ficava isolada. Nas vazantes ia-se até lá por um istmo de rochas praticáveis. A curiosidade do rochedo era, do lado do mar, uma espécie de cadeira natural cavada pelas águas e polida pela chuva. Era pérfida a tal cadeira. A gente ia insensivelmente arrastada até ali pela beleza da vista; parava por amor da perspectiva, como se diz em Guernessey; o encanto dos grandes horizontes retinha lá o observador curioso. A cadeira oferecia-se logo aos olhos dele; era uma espécie de nicho na fachada a pique do rochedo; trepar àquele nicho era coisa fácil; o mar que o talhara tinha feito embaixo uma espécie de escada de pedras chatas, comodamente dispostas; o abismo tem dessas atenções, desconfia sempre da sua cortesia; a cadeira tentava, a gente subia e assentava-se; sentia-se a gosto; tinha por assento o granito gasto e arredondado pela escuma, e por braços duas anfractuosidades que pareciam feitas de propósito; por encosto, toda a alta muralha vertical do rochedo que a gente admirava sem pensar na impossibilidade de escalá-la; era simples esquecer-se sentado naquela poltrona; descobria-se todo o mar, viam-se ao longe os navios entrar e sair, podia-se acompanhar com os olhos uma vela até mergulhar-se além dos Casquets, sobre a rotundidade do oceano; pasmava-se, olhava-se, gozava-se; sentia-se o afago da brisa e do mar; há em Caiena um vespertílio, que adormece a gente na sombra com um suave e tenebroso agitar de asas; o vento é esse morcego invisível; quando não devasta, faz adormecer. Contemplava-se o mar; ouvia-se o vento, até que vinha o letargo do êxtase. Quando os olhos se enchem de um excesso de beleza e de luz, fechá-los é voluptuosidade. Acordava-se de súbito. Era tarde. A maré crescera a pouco e pouco. A água cingia o rochedo.
Estava-se perdido.
Tremendo bloqueio é o mar que sobe!
A maré cresce insensivelmente ao princípio, depois com violência. Chegando às rochas, encoleriza-se, escuma. Nem sempre se pode nadar junto aos cachopos. Excelentes nadadores morreram afogados naquele lugar.
Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. É o que acontece, às vezes, olhando para uma mulher.

© Victor Hugo – Os Trabalhadores do Mar (excerto) – Cosacnaify

Robert K. Merton – Ensaios de Sociologia da Ciência

IMPLICAÇÕES ÉTICAS PARA O ENGENHEIRO

Devido, em parte, à especialização de funções, os engenheiros, assim como os cientistas, são doutrinados com um sentido ético de responsabilidades limitadas. O cientista, ocupado em sua tarefa distintiva de extrair conhecimento novo do domínio da ignorância, por muito tempo negou sua responsabilidade em relação aos modos como esse conhecimento foi aplicado. (A história cria seus próprios símbolos. Foi preciso uma bomba atômica para afastar muitos cientistas dessa doutrina tenazmente sustentada.)

Assim, em muitos setores, sustentou-se como absurdo que o engenheiro pudesse ser considerado responsável pelos efeitos sociais e psicológicos da tecnologia, já que é perfeitamente claro que eles não advêm de seu âmbito especial de atuação. Afinal de contas, o “trabalho” do engenheiro é —note-se quão efetivamente isso define os limites de um papel e, assim, sua responsabilidade social — aperfeiçoar os processos de produção e “não é de sua alçada” considerar seus efeitos sociais ramificados. O código ocupacional dirige a atenção dos engenheiros para os primeiros elos na cadeia de consequências da inovação tecnológica e desvia sua atenção, tanto como especialista quanto como cidadão, dos elos seguintes na cadeia como, por exemplo, as consequências para os níveis salariais e as oportunidades de emprego.

© Robert K. Merton  – Ensaios de Sociologia da Ciência (excerto) – Editora 34

Robert K. Merton – Ensaios de Sociologia da Ciência

AS FUNÇÕES DAS NORMAS DA CIÊNCIA PURA

Um sentimento, que é assimilado pelo cientista desde o início de seu treinamento, diz respeito à pureza da ciência. A ciência não pode aceitar transformar-se no serviçal da teologia, da economia ou do Estado. A função desse sentimento é igualmente preservar a autonomia da ciência. Pois se critérios extracientíficos de valor da ciência, tais como a consonância presumida com doutrinas religiosas, ou a utilidade econômica, ou a pertinência política forem adotados, a ciência se tornará aceitável somente na medida em que atender a esses critérios. Em outras palavras, à medida que o sentimento da ciência pura é eliminado, a ciência torna-se sujeita ao controle direto de outras agências institucionais e seu lugar na sociedade torna-se incrivelmente incerto. O repúdio persistente dos cientistas pela aplicação de normas utilitárias  ao seu trabalho tem como principal função evitar esse perigo, que é particularmente marcante no tempo atual. Um reconhecimento tácito dessa função pode ser a fonte desse brinde, possivelmente apócrifo, em um jantar de cientistas em Cambridge: à matemática pura, e que ela jamais tenha uso algum para ninguém!

© Robert K. Merton  – Ensaios de Sociologia da Ciência (excerto) – Editora 34

Robert K. Merton – Ensaios de Sociologia da Ciência

AS FONTES DA HOSTILIDADE À CIÊNCIA

A hostilidade à ciência pode surgir de, pelo menos, dois conjuntos de condições, embora os sistemas concretos de valores — humanitários, econômicos, políticos, religiosos — sobre os quais se baseia possam variar consideravelmente. O primeiro conjunto envolve a conclusão lógica, embora não necessariamente correta, de que os resultados ou os métodos da ciência são hostis à satisfação de valores importantes. O segundo consiste largamente de elementos não lógicos. A ele subjaz o sentimento de incompatibilidade entre os sentimentos incorporados no éthos científico e aqueles encontrados em outras instituições. Sempre que esse sentimento é desafiado, ele é racionalizado. Ambos os conjuntos de condições subjazem, em graus variados, às revoltas atuais contra a ciência. Pode-se acrescentar que tais raciocínios e respostas afetivas também estão envolvidos na aprovação social da ciência. Mas, nesses casos, considera-se que a ciência facilita a realização de fins aprovados, e sente-se que a ciência facilita a realização de congruentes com aqueles da ciência, ao invés de emocionalmente inconsistentes com eles. A posição da ciência no mundo moderno pode ser analisada, então, como resultante de dois conjuntos de forças contrárias, que aprovam e opõem-se à ciência enquanto uma atividade social de larga escala.

© Robert K. Merton  – Ensaios de Sociologia da Ciência (excerto) – Editora 34

Monteiro Lobato – A Criança é a Humanidade de Amanhã

A LEITURA DE QUANDO CRIANÇA

Lembro-me de um caso. Um menino muito vivo, de riquíssima imaginação, mas com o mais absoluto horror aos livros. O pai queixou-se. Jojoca não lia; sabia ler mas não lia; não queria ler. Fui examinar os livros de sua estantinha. Oh, livros todos da corrente número um, a que não admite a imaginação. Instrutivos, educativos, civicíssimos, aconselhados por um professor de óculos e verruga no nariz com um pelo caracolante.
Fiz uma experiência. Meti entre aqueles livros detestados os contos de Grimm sem recomendação ou sugestão nenhuma. Horas depois o pai pilhou o menino deitado no chão de barriga, devorando Grimm. Ah, “este sim!” Foi o seu comentário. “Este diz o que eu quero.”
O defeito dos livros impróprios e, portanto, refugados pelas crianças está em que retarda o advento do gosto pela leitura. Há homens que passaram a vida sem ler um livro, fora os escolares, justamente por não terem tido em criança o ensejo de ler um só livro que lhes falasse à imaginação. Já os que têm a felicidade de na idade própria entrarem em contato com livros que “interessam”, esses se tornam grandes ledores e por meio da leitura prolongam até o fim da vida o progresso autoeducativo. Quem começa pela menina da capinha vermelha pode acabar nos Diálogos de Platão, mas quem sofre na infância a ravage dos livros instrutivos e cívicos, não chega lá nunca. Não adquire o amor da leitura.

© Monteiro Lobato – A Criança é a Humanidade de Amanhã (excerto) – Leituras Indispensáveis 2 – Aziz Ab’Sáber (org.) – Ateliê Editorial

Conferência feita na Secretaria da Educação e Saúde, Salvador, Bahia, 1950 e publicada no livro de Monteiro Lobato, Conferências, Artigos e Crônicas, São Paulo, Editora Globo, 2007, pp.190-195. 

Marcel Mauss – Sociologia Educacional

O HOMEM NA CONSTATAÇÃO DE SEU CONTEXTO

Segundo Marcel Mauss, o homem é o único ser vivo do planeta capaz de restaurar a trajetória da espécie através dos tempos e em todos os espaços. Ao contrário do que acontece com os animais que permanecem enclausurados em determinados habitats, com estratégias intuitivas para obter alimentos e desenvolver os esquemas protetivos da vida biológica sem nunca saber onde existiram representantes de sua espécie em distantes regiões ou continentes. E, sorrindo, completava Bastide: “as minhocas do Brasil jamais poderiam saber que existem espécies iguais ou similares na África ou alhures”.

© Roger Bastide  – Leituras Indispensáveis 2 (excerto)– Aziz Ab’Sáber (org.) – Ateliê Editorial

Mensagem de Roger Bastide na abertura de um curso de Sociologia Educacional, em março de 1944, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Contribuição pela “história oral”, em homenagem ao genial membro da Missão Francesa que ajudou a consolidação inicial da USP, no período de 1934 a 1945, incluindo um grande acervo de ciências humanas suficiente para implantar o verdadeiro ideário de uma Universidade.
[Em homenagem póstuma a Marcel Mauss e Roger Bastide]

Mário de Andrade – A Revelação

ORAÇÃO DE PARANINFO – DISCURSO DO INCENTIVO À ARTE

Quem já viu um verdadeiro mecenas entre nós! São aliás raríssimos no Brasil, riquezas enormes que permitam o exercício dum permanente mecenismo. Mas esse não é o maior empecilho porém. O mais profundo obstáculo ao mecenismo nacional, alguém já disse, é a obsessão da Santa Casa. Nós ainda sofremos o peso dessa tradição culturalmente devastadora, pela qual quem quer e pode fazer um benefício, dá dinheiro pra Santa Casa, dá dinheiro pra velhice, dá dinheiro aos pobres. Inda bem que se junta a essa caridade, o dar às vezes mais iluminadamente dinheiro para as criancinhas também. Mas a tradição grudenta, o imperativo que organiza inconscientemente os gestos dos benfeitores, é o horror da doença ou da pobreza que esmola na rua. De sorte que a função quasi única do conceito nacional de humanidade é uma proteção negativa, por assim dizer; protege-se a doença e a incapacidade, ninguém não lembra de proteger são e capazes.

Atentai bem, senhores diplomandos e meus senhores: eu não quero com estas afirmativas ásperas, acusar a caridade em si mesma, nem sequer recusar a proteção a santas casas e asilos. Reconheço mesmo, sem o menor receio de invalidar a minha tese, que essa forma de proteção que qualifiquei de negativa, sempre de algum modo é positiva também, porque defende os capazes, tirando do seu meio o mau exemplo da doença e da pobreza-ofício. O que eu indigito como espécie da nossa incultura, é este viver dentro da morte, esse desgalhamento da visão católica do outro mundo, que nos leva a uma caridade assustada, a uma caridade supersticiosa, a uma caridade esquecida de que a própria vida é uma oração. Ninguém aceita a vida como um benefício de Deus. Ninguém compreende a existência como uma luta, mas como um perigo de ir pro inferno. E de tamanho obscurantismo, talvez não haja outro país onde o único sistema de emprestar a Deus seja dar aos pobres e aos doentes. Dá-se ao incapaz que vai morrer, recusa-se ao capaz que vai fazer.

© Mário de Andrade – A Revelação – Oração de Paraninfo (1985) (excerto adaptado) – Leituras Indispensáveis – Aziz Ab’Sáber (org.) – Ateliê Editorial

A Oração de Paraninfo dirigida aos formandos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, em 1935, representa o mais importante documento sobre o espírito crítico, a cultura e o comportamento ideológico e ético do grande intelectual paulista e brasileiro.

ad nauseam

A parede tem forma própria. Relevos, sulcos, ranhuras, picos. É formada e deformada constantemente, do âmago do ser. Foi feita à prova de som. As ondas que nela batem —independentemente de que ondas— batem e se deformam: adquirem o desenho da parede e voltam carregando seu formato. Levam seus picos e vales, suas impressões, de volta ao mundo.
Ondas fortes voltam fortes, reverberam, moldam no ar. Ondas leves talvez nem voltem, refletem de pouco, timidamente. À prova de som.

Fiquei me perguntando o que poderia mudar uma opinião. Falemos do ser humano orgulhoso.
Pensa-se que mudar uma opinião possa ser possível através do grito, da força; falar tão alto que suas ondas deformam paredes e nelas modelam sua expressão. Pensa-se que mudar uma opinião possa ser possível através da repetição, da insistência; repetir ad nauseam o que já se mostrou desgastado. Ora, o homem tende a se defender em ocasiões como estas. Muito antes da sensatez vem o orgulho: gera-se, portanto, ondas de argumentações infindáveis sem que alguma tenha o poder de remodelar parede. Tudo se enrijece e impede qualquer tentativa de mudança.
Nesse caso, o cerne da mudança de opinião está na capacidade de provocar reflexão. Reais mudanças de opinião partem da capacidade de perceber que algo deve ser mudado, atribuindo-se esta capacidade de percepção a ninguém que o próprio orgulhoso. Vinda esta constatação de outrem, paredes se enrijecem.

Miraram as ondas para o ambiente. O meio inerte reverberou; ecos e ecos vindos de todos os lados. Foi assim que se ouviu um leve tilintar e viu-se sua parede mudar de forma. Reflexão… à prova de som?

© Lucas Gobatti

Carlo Ginzburg – O Queijo e os Vermes

O PAPEL DA IMPRENSA NO ACESSO À INFORMAÇÃO

Nos discursos de Menocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda no terreno, um estrato cultural profundo, tão pouco comum que se torna quase incompreensível. Esse caso, diferentemente dos outros examinados até aqui, envolve não só uma reação filtrada pela página escrita, mas também um resíduo irredutível de cultura oral. Para que essa cultura diversa pudesse vir à luz, foram necessárias a Reforma e a difusão da imprensa. Graças à primeira, um simples moleiro pôde pensar em tomar a palavra e expor suas próprias opiniões sobre a Igreja e sobre o mundo. Graças à segunda, tivera palavras à sua disposição para exprimir a obscura, inarticulada visão de mundo que fervilhava dentro dele. Nas frases ou nos arremedos de frases arrancadas dos livros, encontrou os instrumentos para formular e defender suas próprias ideias durante anos, com seus conterrâneos num primeiro momento, e, depois, contra os juízes armados de doutrina e poder.

O desejo de “procurar coisas maiores”, que confessara de maneira vaga doze anos antes perante o inquisidor de Portogruaro, continuava a parecer-lhe não só legítimo, como potencialmente ao alcance de todos. Ilegítima, ou melhor, absurda devia lhe parecer, ao contrário, a pretensão dos clérigos em manter o monopólio de um conhecimento que podia ser comprado por “dois soldos” nas banquinhas de livreiros em Veneza. A ideia da cultura como privilégio fora gravemente ferida (com certeza não eliminada) pela invenção da imprensa.

© Carlo Ginzburg – O Queijo e os Vermes (excerto adaptado) – Companhia das Letras

Bartolomeu Campos de Queirós – Vermelho Amargo

PERCEPÇÕES

Desanuviou em mim a ideia de que as coisas existiam alheias a meu desejo. Viver exigia legendar o mundo. Cabia-me o trabalho exaustivo de atribuir sentidos a tudo. Dar sentido é tomar posse dos predicados. Trabalho incessante, este de nomear as coisas. Chamar pelo nome o visível e o invisível é respirar consciência. Dar nome ao real que mora escondido na fantasia é clarear o obscuro. Ainda criança eu carregava o peso da terra, sem estar no bem fundo.

© Bartolomeu Campos de Queirós – Vermelho Amargo (excerto) – Cosacnaify

Thomas Kuhn – A Estrutura das Revoluções Científicas

AS REVOLUÇÕES COMO MUDANÇAS DE CONCEPÇÃO DE MUNDO

O historiados da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da perspectiva da historiografia contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente transportada para um novo planeta, onde os objetos familiares são vistos sob uma luz diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos. Certamente não ocorre nada semelhante: não há transplante geográfico; fora do laboratório os afazeres cotidianos em geral continuam como antes. Não obstante, as mudanças de paradigma realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de pesquisa de uma maneira diferente. Na medida em que seu único acesso a esse mundo dá-se através do que veem e fazem, poderemos ser tentados a dizer que, após uma revolução, os cientistas reagem a um mundo diferente.

A história da ciência teria um sentido mais claro e coerente se pudéssemos supor que os cientistas experimentam ocasionalmente alterações de percepção do tipo das acima descritas.

© Thomas Kuhn – A Estrutura das Revoluções Científicas (excerto adaptado) – Perspectiva

GEDANKEN, em alemão, “pensamentos”, foi a forma que eu encontrei de, ao mesmo tempo, consolidar e compartilhar o que passa pela minha cabeça. GEDANKEN mostra as pedras nas quais pisei, os líquens que escorreguei, as poças que não achei tão fundas. É uma compilação de ideias fluidas, completas, autoexplicativas e não relacionadas: uma ode a tudo o que me afetou de alguma maneira.